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Ciente de que o Brasil é celeiro de uma riquíssima produção musical, o Corda Nova traz ao palco o que há de mais recente no cenário nacional de música contemporânea: a convite do grupo, três importantes compositores escreveram obras inéditas para um concerto de violões:

Veneno – Visões e reminiscências de texturas e danças” para quarteto de violões – Sérgio Rodrigo
A ideia de veneno usualmente é associada a algo perturbador, remetendo ao efeito, muitas vezes letal, de certas substâncias tóxicas. No domínio das artes, certos poetas associam o veneno tanto a um efeito mágico da música, no que diz respeito à sua potência de gerar transe, como também à intensidade de certas experiências amorosas, tratando-se em ambos os casos da vivência de uma espécie de “torpor” ou de estado de “embriaguez”.

Nesse sentido, para alguns, música e paixão “envenenam”. Segundo Sérgio Rodrigo, o violão, em toda sua gama de usos e significados, expressa tal contorno poético já que se presta tanto ao lamento como à dança. Trata-se de um instrumento que facilmente traduz melancolia e nostalgia, mas também tradicionalmente frequenta as mais distintas cerimônias populares, estando presente em todos os tipos de festas e bailes. A obra Veneno parte de todo esse simbolismo atrelado ao instrumento, buscando salientar esses afetos relacionados ao veneno.

Das doze maneiras de se contemplar o céu – de Gilberto Carvalho
Professor da Escola de Música da UFMG, Gilberto Carvalho parte de diferentes sonoridades para compor esta belíssima obra. Como o próprio nome diz, a composição representa uma divisão das horas diurnas e noturnas do dia (seis maneiras para cada). A música é descritiva da imagem, do imaginário, das sensações. Ela nos convida a observar o céu em vários de seus momentos, desde “as barras do dia” até “as barras da noite”. Por fim, apresenta “caderno de anotações” que condensa os muitos céus observados e nos permite vê-los num golpe de escuta. Além disso, cada uma dessas grandes seções é iniciada com uma bela escritura do tipo coral.

SUITE VI – Roberto Victório
Professor da escola de Música da Universidade Federal de Mato Grosso, SUITE VI faz parte de uma série de suítes compostas por Roberto, escritas para as mais diversas formações (desde piano solo até orquestra sinfônica).

Suítes são agrupamentos de peças relativamente independentes do ponto de vista do material musical que as constitui. Historicamente, porém, são também conjuntos de danças. O grande vigor rítmico com que pulsa a Suite VI de Victorio recupera essa faceta das suítes, mas não só. A profusão e complexidade sonoras, além do fino controle e conhecimento do violão, deixam transparecer a influência do rock progressivo na obra do compositor. As suítes de Victorio são escritas para as mais diversas formações, desde piano solo até orquestra sinfônica. Suíte VI, idiomática e abstrata, tem cinco movimentos: Prelúdio, Quadrante, Hiperfuga, Interlúdio e Final.

Programa

Abrindo a Escuta

Criado há 4 anos, o Corda Nova, um corpo instrumental de 4 músicos-violões, colhe as sonoridades ali, onde elas acabam de brotar, ainda regadas dos fluidos da noite de onde saíram. “Trago-lhe a criança de uma noite da Iduméia”, disse o poeta Mallarmé, referindo-se à criação poética. A Iduméia, um país bíblico onde os homens se reproduziam sós, sem o ventre feminino, um povo monstruoso, portanto. De lá, desta noite escura e solitária, arrancavam estes poetas as belas palavras, de rendição e de luz. E como trabalham os compositores, estes que entregam cartografias sonoras aos seus quatro músicos-violões? Sozinhos talvez, mas em embates com batalhões inteiros de forças invisíveis, operações de memória, captura de sonoridades longínquas, danças vividas, medições, comparações. Operações que tornam visível o invisível, fazendo sonoras as forças adormecidas antes inauditas. Temos então a oportunidade de ouvir e ver eclodir estas sonoridades em seus primeiros espasmos.

Em Das 12 maneiras de contemplar o céu, Gilberto Carvalho evoca por meio de um caro exercício serial, doze instantes, doze incidências da luz, doze possibilidades de ver. É possível, pela sucessão de blocos homofônicos em escansão, texturas melódicas em contrapontos, glissandi em jogos de espaço, sucessões diatônicas e tremolos, descobrir o parentesco entre sonoridades e imagens. Assim como contemplar o céu é deixar o vento plasmar e desfazer formas nas nuvens com a cumplicidade do olhar, assim são as sucessões dos doze instantes do sol que se levanta, preenche espaços com sua luz e retorna às profundezas na noite. Abrir a escuta passa a ser o que há muito tempo se sabe: abrir a visão.

Junto com a partitura de Veneno. Visões e reminiscências de texturas e danças, Sérgio Rodrigo nos ofereceu a seguinte nota de programa:

“A ideia de veneno usualmente é associada a algo perturbador, remetendo ao efeito, muitas vezes letal, de certas substâncias tóxicas.

No domínio das artes, certos poetas, associam o veneno tanto a um certo efeito mágico da música, no que diz respeito a sua potência de gerar transe, como também à intensidade de certas experiências amorosas, tratando-se em ambos os casos da vivência de uma espécie de “torpor” ou de estado de “embriaguez”. Nesse sentido, para alguns, música e paixão “envenenam”.

O violão, em toda sua gama de usos e significados, tal qual o conhecemos, por exemplo no Brasil, pode expressar tal universo poético. Ele se presta tanto ao lamento como à dança. Trata-se de um instrumento que facilmente expressa melancolia e nostalgia, mas também tradicionalmente frequenta as mais distintas cerimônias populares, estando presente em todos os tipos de festas e bailes.

Essa obra parte de todo esse simbolismo atrelado ao instrumento buscando salientar esses afetos relacionados ao veneno. Para isso há uma mescla de atmosferas às vezes longínquas, “sedutoras”, pedaços de músicas ouvidas por aí, com certas estruturas rítmicas pulsantes, inebriantes, valendo-se tanto de sonoridades mais familiares como de abordagens virtuosísticas e menos convencionais do instrumento.”

“… se a vida é curta e o mundo é pequeno,

vou vivendo morrendo de amor,

gostoso veneno”

Nei Lopes

De fato, a experiência de ouvir as sonoridades agenciadas por Sérgio Rodrigo nos proporciona uma viagem quase xamânica. Ali, nas pequenas dobras, esquecidas por trás dos finos tecidos das silenciosas aranhas, residem preciosas reminiscências sonoras, que, porquanto mais sutis, mais potentemente abalam o edifício inteiro daquilo que nos cabe como viventes. A experiência sensível que suspende qualquer tempo cronológico e nos alça a um tempo, talvez mítico, talvez liso, mas pleno e intenso.

Em uma entrevista de julho de 2010, concedida durante o Festival de Música de Campos do Jordão, o compositor Roberto Victorio comenta sobre a profissão do músico-feiticeiro-intérprete-compositor que transcrevemos aqui com certa liberdade:

“(…) Nas minhas pesquisas em etnomusicologia na floresta amazônica, com os povos indígenas com os quais eu convivo há muitos anos, há algo muito bacana: perguntei para um feiticeiro, um chefe de canto, assim que cheguei, há 10 anos atrás, no meu primeiro contato, se poderia aprender a tocar determinado instrumento. Ele me olhou e falou: “você precisa de 30 anos para fazer isso”. De fato, não existe só tocar para eles. Para tocar um instrumento você tem que saber cantar bem, você tem que saber toda essa rede que envolve esse mundo ritual, o mundo da vida na aldeia. Não existe só tocar para eles. Para tocar é necessário saber cantar, saber improvisar com as estrofes, saber tomar conhecimento de todo um mundo místico, ser realmente um feiticeiro. Ser compositor não é só escrever música, é saber lidar com esta grande rede que é ser um bom músico, instrumentista, ser um bom regente, saber soluções, não é só escrever música(…).”

De fato, ao assistir aos ensaios da Suite VI para quarteto de violões deste compositor, o desejo era de dizer aos músicos-violões do Corda Nova: dancem!, cantem!, isto é um ritual!, arranquem-se das cadeiras!, tamanha é a força movedora desta obra. Sim, ela exige do compositor e dos violões-músicos as aptidões do feiticeiro: que dancem, cantem, toquem, e até mesmo curem, envenenem, calibrando as intensidades expressivas dos seus violões.

Mas duas dramáticas contradições banham as primeiras audições desta obra: Ela só se faz audível hoje, com toda a sua potência, pela imobilização do músico-instrumento que uma certa tradição musical construiu: sentado em sua cadeira, atento à partitura, fiel a cada segundo do tempo que deve contar, quase alienado da magia que os sons que produz podem provocar nos ouvintes. “A música como último e pleno culto humano”, ainda disse o poeta Mallarmé.

E estes trabalhos acústicos só se fazem audíveis hoje como forma de resistência, também política, também urgente. Obsessivos, estes músicos-violões, ao fim de cada dia, atravessam uma cidade em clamores, gritos e chamas, e – ainda que, sensíveis, inquisidores e atentos ao cataclisma que assistem pela primeira vez em suas jovens vidas – ainda assim, em qualquer canto onde conseguem se encontrar, criam para si uma espécie de “terra natal”, encurvando seus corpos sobre os seus violões, aconchegando seus ouvidos próximos às cordas que dedilham, extraindo destas cartografias que lhes foram transmitidas pelos feiticeiros, músicas, forças, volições.

Rosângela de Tugny

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Peças Gráficas

Compositores

Sérgio Rodrigo

Sérgio Rodrigo estudou composição na Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais. Seu trabalho tem recebido premiações importantes no Brasil e no exterior: foi duas vezes vencedor do prêmio de composição Camargo Guarnieri, do prêmio de composição orquestral Tinta Fresca realizado pela Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, e do prêmio de composição da Académie de Musique et de Dance “Domaine Forget” no Canadá.

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Roberto Victorio

Mestre em composição e Doutor em etnomusicologia.  É regente, diretor musical e instrumentista do SEXTANTE. É professor de Composição, Etnomusicologia e Estética da Música da graduação e do Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO) na Universidade Federal de Mato Grosso e idealizador das Bienais de Música Brasileira Contemporânea de Mato Grosso.

Gilberto

Gilberto Carvalho

É mestre (2001) e doutor (2008) em Engenharia Elétrica pela UFMG, sendo que em ambos os projetos o foco principal foi a implementação de um sistema automático de análise musical. A partir de 1990 Gilberto Carvalho é professor de Composição e matérias correlativas na Escola de Música da UFMG.

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